Marcio Ebert fala sobre o trabalho no Esportivo-RS e a diferença entre escolinha e base
Em entrevista exclusiva ao DaBase, Marcio Ebert, treinador do time sub-17 e auxiliar-técnico permanente dos profissionais do Esportivo-RS, falou sobre diversos assuntos, incluindo as diferenças pedagógicas no trabalho realizado entre as diferentes faixas etárias e a excelente campanha no Campeonato Gaúcho de 2019. Confira, na íntegra, a conversa com o profissional de 41 anos de idade, desde 2016 no clube da cidade de Bento Gonçalves:
DaBase: Falando um pouco da sua história, por que você escolheu ser treinador?
Marcio Ebert: Na verdade, isso tudo surge da paixão pelo futebol que levo desde criança. Iniciei minha carreira como jogador já tardiamente, na categoria sub 17 do Esportivo, passando pelas demais categorias e o profissional. Devido as várias dificuldades encontradas na época, decidi abandonar os gramados. Após alguns anos, me capacitando e estudando as transformações do futebol através dos tempos, tive a oportunidade de iniciar um trabalho em uma escolinha de futebol social. Foi ali que acabei me empolgando e a cada dia buscando me aperfeiçoar. Com o convite do Esportivo, tive a oportunidade de ser treinador no alto rendimento, o qual me cativou muito. O restante da carreira e a consequente ascensão ao profissional foi um processo natural em função de todo trabalho realizado no clube.
DB: Como é ter que acumular funções num clube de futebol, já que você é técnico do sub-17 e responsável pelas categorias de base?
ME: Em clubes menores, com uma estrutura modesta, a gente precisa executar muitas funções. É um aprendizado que todos profissionais deveriam passar para conhecer todo o processo. No momento em que fui convidado a ser treinador da categoria sub 17, o coordenador Acácio, conhecendo meu trabalho e a minha visão do futebol que ia muito em direção ao planejamento do clube, também solicitou que auxiliasse ele na função de coordenador técnico, ou seja, responsável por gerir toda a metodologia das nossas categorias de base. Aqui trabalhamos todos juntos, sempre com a proposta de seguir a metodologia e a identidade do clube. Por vezes, o acúmulo de função traz uma demanda de trabalho muito grande, tomando bastante tempo dentro da rotina, porém torna-se gratificante em função do retorno dos objetivos alcançados.
DB: No ano passado, o sub-15 do Esportivo fez ótima campanha e chegou às semifinais do Gauchão, sendo eliminado pelo Internacional, que viria a ser o campeão. Conte-nos um pouco sobre aquela campanha.
ME: Temos uma metodologia comum na base, ou seja, um modelo de jogo, onde criamos uma identidade padrão em todas categorias. Este grupo é praticamente formado 90% por jogadores nascidos na cidade de Bento Gonçalves, e vem há cerca de cinco anos treinando e jogando junto. Atletas individualmente interessantes, principalmente tecnicamente, e que chegou em um momento competitivo e juntou a qualidade com os conceitos trabalhados durante a passagem nas categorias anteriores. Esta foi a chave do sucesso dentro de um campeonato fortíssimo.
DB: Com isso, havendo competição em 2020, qual a expectativa, ou a molecada já será sub-17?
ME: Em 2020, este grupo em sua maioria subiu para o sub-17, juntando-se a um grupo base que já disputou a categoria no ano anterior. Esta confecção de equipe, juntando os jogadores 2003 que já formavam o time base no ano passado, com este grupo que subiu da sub-15, ou seja os 2004, criam uma expectativa muito grande em relação a rendimento dentro da competição, pela qualidade individual dos atletas, e também, em grande parte pela sequência do modelo de jogo padrão, o que faz com que todos jogadores entendam os conceitos trabalhados pelos treinadores.
DB: No caso do Esportivo, que não tem sub-20, como se dá o aproveitamento de atletas sub-17 para os profissionais? Jogadores de destaque são emprestados durante esta lacuna ou passam diretamente a integrar o elenco principal?
ME: As duas formas. Como não temos as categorias de juniores, ou seja, sub-20 e sub-19, aproveitamos os destaques, subindo para o profissional, geralmente em torno de três ou quatro por temporada. Os atletas que não forem aproveitados em cima, nós emprestamos para equipes que possuem sub-20, ou até mesmo para equipes profissionais que disputam divisões inferiores aqui no estado. Dentro do profissional, ano passado na campanha de acesso do clube, chegamos a contar com seis meninos de 17 anos, sendo que após a competição os mesmos foram emprestados a outros clubes do Rio Grande do Sul. Neste ano, disputando o principal campeonato do estado, temos três jogadores sub-17 integrando o grupo, sendo que no último jogo, um dos jovens estreou e acabou fazendo o gol da vitória. É claro que a direção sabe da importância do sub-20 dentro do processo de formação, e logo que for viável financeira e estruturalmente, fará o possível para estruturar esta categoria dentro do clube.
DB: Em sua rede social vocês pôs uma declaração do argentino Jorge Valdano, de 1998: “O futebolista deve conservar o gosto por jogar e o desejo de perfeição, a partir daqui só é necessário pôr-se de acordo com a ideia que vai defender porque sendo vital a qualidade individual, ainda o é mais a capacidade de coordenação de todos os elementos em jogo”. Por que ela é tão marcante no seu ponto de vista?
ME: Eu acredito muito em modelo de jogo, entendimento tático, conceitos bem definidos entre outras coisas, mas acima de tudo entendo o futebol de maneira sistêmica, ou seja, como um todo. Acredito também, que o jogador brasileiro tem muitas qualidades individuais, genuínas do nosso futebol. No meu ver, na montagem de um modelo de jogo, o treinador precisa identificar e compreender as características individuais de todos atletas, e em seguida montar um modelo adequado a potencializar as melhores características de cada um. Uma inversão de papéis está acontecendo dentro do futebol, ou seja, em muitas vezes, os treinadores montam um modelo de jogo e querem adaptar os atletas em função disso, o que na maioria das vezes acaba prejudicando a equipe, ferindo as características principais dos jogadores. Também penso que quando organizarmos o futebol brasileiro, sem tirar o que os jogadores têm de melhor, voltaremos a ser uma equipe quase imbatível.
DB: Qual a importância da formação e do preparo dos professores e profissionais que trabalham na fase de aquisição das capacidades psicomotoras quando as crianças ainda estão nas escolinhas?
ME: Acredito que na fase de aquisição, ou seja, principalmente dos cinco aos 12 anos de idade, as crianças devam “jogar bola”, ou seja, se divertir e aprender como resolver as situações que o jogo propõe. Claro que nesta caminhada é muito importante que os profissionais envolvidos trabalhem o repertório motor em sua infinidade de movimentos e também a técnica. Sou totalmente contra a especialização precoce, e também das metodologias tecnicistas, e até mesmo da técnica de reprodução de trabalhos, onde a maioria dos ex-jogadores replicam o que fora aplicado a eles, desrespeitando alguns princípios pedagógicos. Devemos estimular a formação de jogadores inteligentes, ou seja, que compreendam o jogo, sendo assim, formando um repertório rico em tomadas de decisões.
DB: Aliás, é muito diferente o trabalho realizado nas escolinhas em relação ao que é feito no chamado “alto rendimento”?
ME: Como relatei acima, no meu ver o trabalho baseado no jogo, na formação do portfólio coordenativo e técnico deve ser a tônica do ensino do futebol para as crianças, por formar atletas inteligentes para resolver as situações que o jogo propõe e também pela ludicidade e o prazer em praticar e acima de tudo continuar na modalidade. A partir dos 14 anos temos que iniciar o processo de alto rendimento, é claro respeitando esta fase de adaptação. O futebol é baseado no alto rendimento, ou seja, nos resultados, e os jovens desportistas devem serem inseridos neste meio de forma adequada e progressiva, sempre com um planejamento que contemple uma sequência pedagógica correta de aplicações de treinos e conteúdo, sendo eles técnicos, táticos, físicos e cognitivos.
DB: Estudos da Academia Americana de Pediatria (AAP) dizem que 70% das crianças que se especializam cedo em um esporte desiste da modalidade por volta dos 13 anos de idade e lista alguns motivos: pressão, pela falta de diversão, falta de tempo livre, lesão por sobrecarga… Qual a sua análise?
ME: Sou totalmente contrário a especialização precoce, por estes e outros motivos. Como já citei, acredito que as crianças precisam gostar do que fazem, para se desenvolverem, e existem alguns fatores que prejudicam esta relação entre o aprender e o prazer, fazendo com que muitas crianças desistam ou até mesmo adquiram possíveis traumas. O desempenho e a performance são inerentes ao alto rendimento, e por isso deve ser tratado como um aspecto importante, desde que seja bem aplicado em termos de formas e adequação às faixas etárias. Uma correta formação dos profissionais que trabalham com estas faixas etárias também é muito importante, principalmente relacionado com a Educação Física, onde se aprende entre tantos conteúdos, a biologia, a fisiologia, as etapas de desenvolvimento motor, a psicomotricidade e as metodologias, que nortearão uma adequada atuação dos profissionais nas devidas etapas do ensino do futebol de formação.
DB: Na hora de comandar os garotos da base, quais as principais diferenças que você enxerga no trabalho feito com os profissionais, onde é auxiliar-técnico?
ME: Além da complexidade dos trabalhos, e da cobrança por resultados que são bem diferentes no profissional em relação às categorias de base, acredito que o que mais tenha diferença seja na paciência para ensinar. No profissional, a maioria dos jogadores já está com um lastro de experiência muito vasto, fazendo com que muitos detalhes simples não sejam necessários na abordagem, ao contrário da base, onde o professor necessita de muita paciência e compreensão para ensinar os conteúdos sempre do mais fácil para o mais difícil. No profissional, a personalidade dos jogadores está bem formada, traduzindo em um poder maior de concentração e atenção, o que diminui e muito os erros cometidos no processo treino/jogo, o que na base é diferente, até mesmo pelas características cognitivas das respectivas idades, onde se desconcentram facilmente e tem algumas dificuldades de atenção, proporcionando o cometimento de muitos erros, muitas vezes simples.
DB: Cada vez mais técnicos das categorias de base pelo país estão recebendo oportunidades em equipes profissionais. No seu entendimento, a que se deve isso? Aproveitando o ensejo, todo treinador deveria passar pelas categorias de base antes de treinar o profissional?
ME: A meu ver todos os técnicos deveriam passar pelas categorias de base, é onde aprendemos os processos de ensino e gestão. Faço uma analogia com o ensino regular, onde todos os estudantes iniciam na educação infantil, passam pelo ensino fundamental, ensino médio, ensino superior, pós, mestrado, doutorado e assim por diante. Por que os técnicos não devem passar por todo este correto processo? Será que um aluno que passa do ensino fundamental para uma universidade está preparado e vai ter sucesso? Da mesma forma um treinador, vejo que pode até dar certo pelas características do futebol, porém a probabilidade é muito menor de um profissional que iniciou lá nas categorias inferiores e conheceu na prática todo processo envolvido. Com isso não quero dizer que o acadêmico é melhor que ex-jogador, pois acredito que o ex-jogador que buscar o conhecimento, passar pelo processo todo vai ser um profissional com melhores possibilidades de dar certo no meio.
DB: Atualmente a CBF promove Brasileiro e Copa do Brasil das categorias sub-17 e sub-20, mas alguns clubes ainda insistem que a formação dos atletas (e do cidadão, num contexto mais amplo) é mais importante que um título conquistado. Você concorda?
ME: Na minha visão, nas categorias de base a gente precisa saber analisar como as coisas acontecem. Devemos ter claro que existem os resultados diretos, ou seja, vitórias, empates, derrotas, pontos, classificações, títulos ou rebaixamentos, e também os resultados indiretos, que são desenvolvimento individual, coletivo, minutagem e lastro de experiências, de uma forma geral ter uma visão da formação integral dos jovens jogadores. Sem sombra de dúvida que o resultado baliza muitas tomadas de decisão, principalmente no que se refere à direção e planejamento. Para alguns clubes vencer, conquistar títulos está acima de priorizar uma formação adequada aos seus jogadores, fazendo com que o “vencer a todo custo” seja o objetivo a alcançar, passando por cima de muitos processos de formação e dentro disso até mesmo prejudicando muitos atletas em seu início de carreira. Saber como perdeu e como venceu é o que baliza e direciona todo processo.
DB: Como o Esportivo lida com suas categorias de base? Existem peneiras? Como são realizadas? O que conta para a escolha de um futuro atleta?
ME: Não temos departamento de captação, montamos nossas equipes, na maioria das vezes utilizando os meninos que sobem das categorias inferiores. Para complemento dos grupos organizamos avaliações, que são realizadas uma ou duas vezes por temporada, conforme a necessidade, sempre com duração de uma semana. Também trabalhamos integrados com as escolinhas de futebol da região, onde seus respectivos professores nos indicam meninos que se destacam. Como professores, procuramos acompanhar os torneios regionais para buscarmos algum possível jogador de destaque para incluirmos no grupo. Dentro das características avaliadas nos meninos, como temos um modelo de jogo propositivo baseado na posse de bola, buscamos jogadores técnicos de bom passe e domínio, com boa movimentação e que principalmente reajam rapidamente a perda da bola, entre outras características mais específicas que também contam no momento da avaliação.
DB: Você é favorável que os Estaduais de base tenham o maior número possível de inscritos ou defende a ideia de divisões já desde as categorias inferiores ao profissional?
ME: Vivenciei os dois modelos de campeonato já realizados aqui pela FGF, ou seja, um modelo que contava com duas divisões, sendo que na Primeira Divisão foram agrupados os times que possuem o profissional disputando o Gauchão Série A, e os demais na Segunda Divisão. Ficou um campeonato fortíssimo na primeira divisão, com jogos de uma qualidade alta, porém, em um ponto de vista econômico ficou um campeonato com um custo mais elevado, pois as viagens eram mais distantes. Nos últimos anos a FGF reuniu todos clubes em uma divisão somente, regionalizando o campeonato, diminuindo custos, porém, em alguns jogos, a disparidade técnica fica bem evidente. No meu ver, precisamos independentemente de divisão, manter um campeonato que envolva um grande período e que acima de tudo, proporcione, uma grande minutagem para os jovens atletas.
DB: Num país desigual como o nosso, muitos meninos sonham com o estrelato através do futebol, mas poucos sabem das dificuldades que é vencer neste esporte. Manda um recado pra galera que ainda está buscando uma oportunidade de mostrar seu talento em alguma das peneiras espalhadas pelo Brasil.
ME: O futebol é um esporte massivamente praticado no nosso país. Existem muitos meninos que sonham em se tornar jogador de futebol, cada um com seus sonhos, mas sempre com o objetivo de ganhar dinheiro e poder dar a família o conforto necessário. Muitos sonham e muitas vezes possuem a imagem de grandes craques do futebol mundial como um estereotipo do futebol, porém não sabem que na verdade apenas uma parcela muito pequena de jogadores chega a este nível, e que mais de 90% dos jogadores estão em equipes pequenas e recebendo um salário que mal os sustenta. Para os meninos digo que necessitam de muito foco, trabalho e acima de tudo resiliência, para enfrentar as dificuldades impostas durante o processo de formação que inicia desde as avaliações, até a tão sonhada ascensão aos profissionais. Os jovens que realmente querem chegar nos profissionais e assinar um contrato com algum clube tem que ter em mente que deverão deixar muitas coisas de lado para se dedicar a carreira, que não é fácil e que existe milhares de meninos que também possuem o mesmo sonho, mas utilizando o talento, com muito trabalho, foco, dedicação pode chegar lá.